domingo, 19 de julho de 2009


POR NÃO ESTAREM DISTRAÍDOS

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Lispector, Clarice - Para não esquecer

2 comentários:

Filipe Hage disse...

As vezes ensaiando no teatro, brincava-mos com algumas cenas e várias vezes descobria-mos coisas maravilhosas que depois tentávamos reproduzir em cena, e então aquilo que fizemos muito bem espontâneamente saia muito mal, porque ja não era espontâneo, tinha o peso da responsabilidade da reprodução, e aí chegávamos a conclusão de que o agora ja passou e que nunca mais conseguiremos reproduzir nada igual, pode-se fazer parecido, pior ou até melhor, basta apenas se dintanciar e deixar que as coisas fluam.

Ana Carolina disse...

Eu fico pensando se todas as pessoas um dia irão passar por alguma coisa parecida, mas nunca sei responder, alguns parecem tão realizados em suas vidas, mas na verdade eu acho que esses são os que mais escondem suas dúvidas, seus problemas. Outros vivem como se o amanhã fosse uma criança boba, esses sim devem ser felizes, não pensar no futuro, não esperar, apenas viver e deixar os que nos rodeiam livres. Nós queremos estar juntos, mas é impossível se não tivermos uns momentos sós.