segunda-feira, 30 de março de 2009

uh...


Palavras Aladas
Silêncio era a coisa de que aquele rei mais gostava. E de que, a cada dia, mais parecia gostar.Qualquer ruído, dizia, era faca em seus ouvidos.
Por isso, muito jovem ainda, mandou contruir altíssimos muros ao redor do castelo. E logo, não satisfeito, ordenou que por cima dos telhados e dos jardins, passasse imensa redoma de vidro.
(...)
Mas se os sons não podiam entrar, verdade é que também não podiam sair. Qualquer palavra dita, qualquer espirro, soluço, canto, ficava vagando prisioneiro do castelo, sem que lhe fossem de valia fresta de janela ou porta esquecidade aberta. Pois se ainda era possível escapar às paredes, nada os libertava da redoma.
Aos poucos, tempo passando sem que ninguém lhe ouvisse os passos, palavras foram se acumulando pelos cantos, frases serpentearam na superfície dos móveis, interjeições salpicaram as tapeçarias, um miado de gato arranhou os corredores.
E tudo teria continuado assim, se um dia, no exato momento em que sua majestade recebia um embaixador estrangeiro, não atravessasse a sala do trono uma frase desgarrada. Frase de cozinheiro que, sobrepondo-se aos elogios reais, mandou o embaixados depenar, bem depressa, uma galinha.
Mais do que os ouvidos, a frase feriu oo orgulho do rei. Furioso, deu ordens para que todos os sons usados fossem recolhidos, e para sempre trancados no mais profundo calabouço.
Durante dias os cortesãos empenharam-se naquele novo esporte que os levava a sacudir cortinas e rastejar sob os móveis. A audição certeira abatia exclamações em pleno voo, algemava rimas, desentocava cochichos. Uma condessa encheu um cesto com um cento de acentos. Um marquês de monóculo fez montinhos de monossilábos. E houve até quem garantisse ter apanhado entre os dedos o delicado não de uma donzela. Enfim, divertiram-se tanto, tão entusiasmados ficaram com a tarefa, que acabaram por instituir a Temporada Anual de Caça à Palavra.
De temporada em temporada, esvaziava-se o castelo de seus sons, enchia-se o calabouço de conversas. A tal ponto que o momento chegou em que ali não cabia mais sequer o quase silêncio de uma vírgula. E o Mordomo Real viu-se obrigado a transferir secretamente parte dos sons para aposentos esquecidos do primeiro andar.
Foi portanto por acaso que o rei passou frente a um desses cômodos. E passandou ouviu um murmúrio, rasgo de conversa. Pronta a reclamar, já a mão pusava na maçaneta, quando o calor daquela voz o reteve. E inclinado à fechadura para melhor ouvir, o rei colheu as lavas, palavras, com que um jovem, de joelhos talvez, derramava sua paixão aos pés da amada.
A lembrança daquelas palavras pareceu voltar ao rei de muito longe, atravessando o tempo, ardendo novamente no peito. E em cada uma ele reconheceu com surpresa sua própria voz, sua jovem paixão. Era sua aquela conversa de amor há tantos anos trancada. Fio da longa meada do passado, vinha agora envolvê-lo, religá-lo a si mesmo, exigindo sair de calabouços.
(...)
-Que se derrube a redoma! - lançou então o rei com todo o poder de seus pulmões. - Que se abatam o muros!
E desta vez vai o grito por entre o estilhaçar, suindo, planando, pássaro-grito que no zul se afasta, trazendo atrás de si em revoada frases, cantigas, epístolas, ditados, sonetos, epopéias, discursos e recados, e ao longe - maritacas - um bando de risadas. Sons que no espaço se espalham levando ao mundo a vida do castelo, e que, aos poucos, em liberdade se vão.
(Colasanti, Marina. Doze reis e a moça no labiritno do vento.)

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